ORIGINAL SIN - PARTE I
- Eva Ribeiro
- 4 de ago. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 8 de ago. de 2020

Apesar de saber cozinhar razoavelmente, a minha amiga Paula resolveu inscrever-me num daqueles workshops de culinária e que raramente se conseguia lugar por ser dado por um prestigiado chef culinário.
- Cozinhar é muito mais do que apenas elaborar um prato e servir…é um acto de amor e que conjuga sabores, cheiros, tem o teu toque porque és tu que misturas os ingredientes, até o simples som do refogar que ouves é magia a acontecer….ah e o toque, aquele momento em que levas o dedo à colher com que misturas tudo… é uma experiência única e tu não podes perder. – Disse-me para que eu desse sequência à candidatura que já tinha sido aprovada.
- Vou, mas contrariada… - Disse-lhe num daqueles dias cinzentos em que tudo me parece negro.
- Acho que vais ter uma surpresa e não te disse, mas o chef é bem interessante. – Disse, na esperança que eu reagisse, mas nem isso surtiu qualquer efeito.
- Está bem… - Disse eu a olhar de forma vaga o que ia passando na televisão, sem ter nenhum interesse, nem por aquilo que habitualmente prendia a minha atenção.
- Por achar que precisas de coisas novas é que te inscrevi…precisas de um refresh na tua vida, um reinício de algo…para ver se sais desse torpor que até a mim me deprime.
- Vá…deixa-me. Tenho que estar amanhã a que horas na morada que me deste? – Perguntei.
- Às 10h00. Será a recepção dos candidatos e depois começará. – Disse-me a minha amiga.
- Estarei lá, mas juro que não voltarei a aceitar algo assim. Foi a última vez…e vou porque não tenho mais nada interessante para fazer. – Digo, como se a minha vida fosse recheada de aventura e movimento…
- Amanhã ligo-te para saber como correu. – E deu-me um beijo, já estava eu deitada no sofá preparada para ver qualquer coisa que estivesse a dar na televisão…ver sem ver…ver sem sentir. Apenas ver por ver…
Ela saiu, como se tivesse acabado de deitar uma criança na cama…e a verdade é que com quase 40 anos eu não precisava daquele paternalismo todo. Cobri-me com uma manta, apesar de ser verão, pois sentia o meu corpo frio…eu estava fria…e sei que pouco tempo depois os meus olhos cederam e eu adormeci.
Acordei a meio da noite desconfortável por estar no sofá e mudei-me para a minha cama, em modo sonâmbulo.
Acordei com o despertador e não demorou muito a estar na rua, com o meu Fiat 500, um clássico que tinha herdado do meu pai e que preservava com a vida. Cheguei à morada que a Paula me tinha dado e estacionei no parque do edifício. Olhei para o papel que me tinha dado quando entrei no elevador e não estava a perceber se era no 3 ou no 8º andar.
- Raios…parece um 3… - Falei sozinha, apesar de nesse momento ter entrado um homem que partilhou o elevador comigo.
- Para que andar vai? – Perguntou-me antes de carregar no botão.

Ergui o meu olhar…
E por momentos fiquei estarrecida com aquele moreno de olhos claros que tinha diante de mim.
- Não sei bem, a minha amiga escreveu-me a morada num papel. Consegue decifrar? É que eu não e não queria nada chegar atrasada. – Confessei-lhe.
- Parece-me um 8… - Disse ele vagamente… - Mas se me disser para onde vai talvez a possa ajudar. – Disse-me ele.
Ajeitei a minha t-shirt branca que contrastava com o meu tom de pele e terminava onde começavam as calças de ganga.
- Vou para um workshop de culinária…que a minha amiga me tentou vender ser uma experiência quase orgásmica…e não estou com disposição nenhuma. – Disse-lhe e ele muito prontamente me respondeu.
- Deve ser no 8º piso, é onde costumam decorrer essas coisas de que fala. – Disse ele. – Mas gosta de cozinhar? – Perguntou-me.
- Cozinho…mais por obrigação do que por gosto… - Confessei.
- Há quem defenda que cozinhar é uma experiência sensorial que ultrapassa o senso comum. – Disse de forma filosófica.
- Tem de conhecer a Paula, a minha amiga, diz o mesmo…vocês devem pertencer ao mesmo clube, mas eu olho para a culinária de forma básica e primária, talvez seja mesmo esse o termo. – Disse simplesmente.
- Quem sabe se não muda de ideias com o curso que vai fazer. – Diz ele.
- Duvido muito…já muito pouco me surpreende. – Digo e vejo-o sair no mesmo andar que eu. – Também vai sair aqui? – Perguntei quando o vi fazer o mesmo percurso.
- Vou dar uma aula. – Diz ele e vejo-o desaparecer pelo corredor, mas olhando para trás. – Foi um prazer conhecê-la…como se chama? – Perguntou ele.
- Eva. – Respondi.
- Prazer. – Disse sorrindo enquanto se afastava.
E procurei a sala que estava no pequeno papel e ia tão distraída que ia esbarrando com uma porta que entretanto se abriu. E por acaso até era a sala para onde tinha de ir. Entrei e mais umas quantas pessoas e, à vez, fomos preenchendo aqueles formulários que pretendem saber o que fazemos, o que gostamos, porque estamos ali. E eu só pensava em matar a minha amiga por me fazer perder tempo nestas tretas.
Entreguei o meu formulário e ocupei uma das bancadas que me foi destinada, pelo número que me foi atribuído. E não demorou muito a estarmos todos em cada bancada…na expectativa de ver alguém chegar…
E as luzes apagam-se ligeiramente…e ouve-se alguém ao fundo a recitar um poema que nunca tinha ouvido…mas que retive…
Feito de cores, Feito de cheiros, Cheiro a salsa, manjericão, canela e açafrão. Feito de sonhos, de memórias , de sabores…
Assim se faz um prato… um pouco de imaginação, uma pitada de alegria, uma dose de amor.
assim se faz um prato… tomate, cebola, pimentão, os aromas a bolos quentes a pairar pelo ar.. o forte cheiro das ervas aromáticas espalhado pela cozinha perfumando todo o ar
Assim se faz um prato… mais um pouco de açúcar, uma pitada de canela e o som das gargalhadas em volta de uma mesa ora cheia…ora vazia..
Em cada cozinha existe poesia… no barulho dos tachos e das panelas, nos aromas que se espalham pelo ar, no cheiro a pão quente, nas cores que pairam numa salada ou no gosto inigualável de uma refeição confeccionada com as nossas mãos.
Mais um pouco de alecrim por favor e uma pitada de sal não ficava nada mal! Prova-se o gosto verificam-se os temperos, fazem-se poemas com ingredientes, agora uma batata, ora uma cenoura, junta-se coentros, um fio de azeite, depois o tomate, o lume acende-se e a magia acontece… cada alimento transforma-se, fundem-se sabores, do nada, cria-se o tudo!
Assim se faz um prato como se fosse um poema no qual as palavras se alinham sílaba a sílaba até formar um todo perfeito!
E foi ao som destas palavras que a aula começou…
- Bom dia a todos o meu nome é Daniel Pietro e sou o chef que irá estar durante os próximos dias com vocês.
E naquele momento tive de me segurar à bancada para não cair, pois o chef tinha sido o homem que me acompanhara no elevador até ao 8º andar e me viu vociferar pela escolha daquele workshop. Só me apetecia fugir dali.
- Para quem não me conhece, sou chef de um restaurante de renome na cidade há já alguns anos e do qual sou também proprietário. Mas a minha vida na cozinha não começou de forma simples, aliás posso dizer-vos que as primeiras experiências foram mesmo catastróficas e se alguém me dissesse, nesses tempos, que um dia me tornaria chef, acho que acharia que me contavam uma anedota. Foi o tempo que me fez de viagem em viagem, de casa em casa, de mulher em mulher, descobrir os prazeres…da culinária e que não se resumem a misturar tudo na mesma panela…é muito mais que isso, é um acto de amor. E foi assim, por caminhos mais ou menos sinuosos, que fui percorrendo na minha vida, que comecei a vibrar com os cheiros, os sabores, o toque…a cor…e no prazer que dava a quem servia o que cozinhava. E o meu prazer estendeu-se a outros…a vontade de partilhar o meu prazer…e que o pretendo fazê-lo, fez com que trabalhar atrás de um fogão de restaurante em restaurante me mostrasse que eu aspirava algo maior que eu. Achava eu que era um sonho…hoje é a minha realidade. Mas quero conhecer-vos…falem-me do que vos levou a inscreverem-se. E não quero saber daquelas tretas que escreveram naquelas folhas, falem-me de amor…porque eu ensino com amor e quero que aprendam com amor.
E lentamente um a um, cada um dos presentes foi falando de si e das suas motivações, aspirações e expectativas, e ele ia fazendo algumas considerações simples…e chegou a minha vez.
- Olá a todos…sou a Eva e honestamente nem sei bem como começar. – Digo baixando o olhar.
- Pelo início…pelo amor… - Diz ele e vai caminhando na minha direcção.
Ainda mais aflita fiquei por ver este homem falar de amor, misturar ingredientes, quase me fazendo sentir o cheiro da comida acabada de fazer…e fazendo-me até olhar para ele com desejo de provar algo….diferente.
- Ora bem…. – E deixei-me levar pelo momento e disse o que sentia. - Eva…o meu nome invoca pecado, tentação e criação…e quero também estender outro ingrediente: a criatividade, que sempre foi uma característica minha, mas está um pouco apagada nos últimos tempos é certo, à cozinha…e a vontade que tenho é que a maçã que ofereço, desde os primórdios do tempo não seja uma simples maçã, mas seja a maçã que levou o Adão a perder-se por aquela dentada. Gostava de sair daqui a cozinhar, mas não cozinhar só por cozinhar, quero fazer do que cozinho um pecado…e para mim amor e pecado andam sempre de mãos dadas, por isso… - E terminei.
- Gostei do que ouvi…amor e pecado é a primeira vez, mas parece-me promissor.
Senti-me ruborizar e entretanto as restantes pessoas fizeram a sua apresentação e ele ficara parado na minha mesa, a meio da sala a ouvi-las.
- Hoje não será uma aula prática, era mais uma aula para eu vos conhecer um pouco melhor, pois iremos passar algum tempo aqui e é importante a nossa ligação funcionar. – E nesse momento olhou para mim e desviei o olhar para o meu telefone que vibrava incessantemente. – Por hoje estão dispensados. – E mal o ouvi dizer isto, preparei-me para sair, mas teria que passar por ele.
- Eva…
- Sim, chef…
- Temos uma grande lição em mãos. – Disse ele, travando o meu avanço em direcção à porta.
- Temos? – Perguntei, retoricamente.
- Vou ensinar-te o que sei…mas, a paixão com que hoje te ouvi falar não se vai perder…e vais pecar…e vais amar…
- A cozinhar…. – Termino a frase dele.
- Também….- Disse ele e foi até à sua mesa e eu aproveitei para passar e sair.
E saio dali a fugir, nem sei bem de quê…mas a fugir…talvez de mim própria…
Comentários